quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Crônica de um amor não vivido

Guarda-chuvas coloridos abriam apresados em todas as direções, a chuva fina que caia naquela tarde cinzenta ganhou força, mas veio sólitária, desacompanhada do vento e trovoadas típicos das tempestades de verão. Ela caminhava pelas ruas desatenta ao que se passava ao redor, o trajeto era curto, diminuia o passo enquanto a água escorria suave pelo corpo. Levava consigo a saudade recente daquele amor não vivido.

Como quem assiste ao trailer de um filme inédito, viu as imagens passarem em fragmentos pela mente. Lamentou as palavras não ditas, os filmes não assistidos, as viagens não realizadas, as carícias não vividas, os pensamentos não compartilhados.

Desejou tempo. Queria manhãs preguiçosas, tardes no parque, dias nublado regados a pipoca e sessão de filme cult. Cafés, balés, salsas, óperas, fotografias, livros, canções ao pé do ouvido. Jantar à dois, à quatro, à muitos. E porque não dias cansativos, dias difíceis para se entender o valor do não estar só. Desejou que ele a desenhasse a meia luz enquanto ela bailava leve num gesto exclusivo de ousadia e liberdade. Tinha o coração aberto, o passado guardara numa caixinha, era hora de viver o presente. Queria saber o que lhe reservava aquele encontro inusitado.

Por uma fração de segundos ouviu a voz agora tão habitual, olhou ao lado, estava só. Lembrou-se da despedida repentina. Sentiu os olhos encharcados. Na garganta um aperto, no peito a ilusão de ter de volta o amor que nem ao menos tivera a chance de chamar de seu. Tinha a alma em luto. Luto por um corpo presente que embora jaz em vida segue como uma enorme ausência consentida.

Sentiu saudades. Certa vez lera num texto “saudade é não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche. Saudade é nunca mais saber de quem se ama, e ainda assim doer.” Continuou na chuva, parada como quem espera uma resposta vinda do céu. E a saudade? Ainda estava ali. Pior do que o término de um amor calejado é a falta de um amor não vivido.

ps: Trilha sonora do dia What Am I to you – Nora Jones
When I look in your eyes
I can feel the butterflies
I'll love you when you're blue
But tell me darlin' true
What am I to you?

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Devo ser a torta de blueberry

A moça de olhar distante entrou na confeitaria, buscava refúgio seguro, um lugar onde pudesse colocar os pensamentos em ordem e remontar o quebra-cabeça de um coração em pedaços. O confeiteiro ao notar o semblante tristonho da jovem lhe ofereceu uma fatia da torta que lhe parecesse mais apetitosa na loja inteira.

Num sorriso desajeitado a moça agradeceu e correu os olhos marejados de lágrimas ao seu redor, sem deixar de admirar a delicadeza com que cada uma das iguarias havia sido confeccionada. Como se pudesse ver o que passava no interior da jovem, o sábio confeiteiro fez uma sugestão. Que tal a torta de blueberry?


Enquanto a jovem saboreava aquela pequena obra de arte o confeiteiro lhe disse. Minha cara, fui agraciado com o dom de fazer doces e os faço todos com o mesmo amor e dedicação. Repare novamente na vitrine, todas as manhãs coloco à disposição dos clientes tortas de diferentes sabores e todos os dias ao final do expediente um fato curioso se repete. Nunca sobra se quer uma fatia da torta de chocolate. Dá de morango resta sempre alguns poucos pedaços. Já a de blueberry permanesse quase intacta, embora tenha a mesma qualidade das demais.


- A torta de blueberry tem mesmo um sabor muito bom, mas se lhe dá prejuízo nas vendas porquê o senhor continua a fazê-la?!

- Porque a torta de blueberry tem um sabor inigualável e há sempre quem vem a confeitaria buscando especialmente por ela.


Certa vez uma grande amiga me contou uma história similar, cena de um filme. Ainda não tive a chance de assisti-lo, mas ousei imaginar o encontro da jovem com o suposto confeiteiro. Nesse momento quero acreditar que sou como aquela torta de blueberry! Um dia alguém vai chegar a procura de um sabor especial, vai se lambuzar, lamber os dedos, dizer que a torta de blueberry é a sua favorita e que não pode mais ficar sem a tal iguaria.



Ps:Texto inspirado no filme My Blueberry Nights, conhecido em português como Um beijo roubado.